20.5.08

poesia




o mar não é um lugar seguro.
a praia não é segura. ontem mesmo
uma família que fazia um
piquenique foi alvejada, em gaza.
uma praia. areia crivada. o declínio
do mundo. uma estrada onde a
margem verde estampa sabor.
penso nas coisas, mas agora enfrentarei
um trânsito em busca de Eliana.
falta de tudo nesta cidade: estações,
estações, estações.
escute a tácita recusa em subir as compras.
e nós moramos num mundo bonito.
há uma pane nos elevadores. subiremos
pelas escadas e nosso esforço
como o condutor do riquixá
naquele filme bonito. a vida é um
filme bonito. pessoas alvejadas, o
mundo cai, as estações, o andar de cima,
penso nas coisas, mas agora enfrentarei
um trânsito. algum lugar.




os arquitetos engoliram os livros da sala
livros são um sem. um nada. um fim.
das coisas. e quatrocentos quilômetros
se chocam no chão. a sua casa está
clara, as coisas retornam à caixa,
ao lar. um brinde ao eterno e natural
das coisas. estamos salvos. uma sala
mesmo estojo e seus compartimentos:
aqui razão, ali aromas verdes, outro
para os explosivos. você merece. você
merece dizer o contrário de. a vida
e o fim das coisas, da tarde, a faixa
do disco. me dê a sua a sua mão. vê esta
linha aqui?


***


carlos augusto lima foi quem grafou as duas pequenas jóias acima. copiei-as do livro vinte e sete de janeiro, recém-lançado por lumme editor (leia-se: francisco dos santos). a capa do livro é de eduardo jorge - como carlos, um jovem mestre da delicadeza, no que esta tem de força guardada dentro, sempre à espera e já em ação. o livro é bonito e denso como tão pouca coisa humana tem conseguido ser. um dia, no feio aeroporto de brasília, a caminho do ceará, mal pensei no carlos e ele apareceu, rumo ao rio grande do sul. conversamos com a calma de quem apenas retoma o fio de uma conversa há muito iniciada e cada um retomou o curso de sua errância. a poesia dele é como ele é: uma conversa que não terá porque nunca teve: fim, começo.

Dica

19.5.08

No Saravá de outra noite



Mire e veja o time que entrou em campo na terça-feira da semana passada, 13 de maio, para o Saravá de Celebração dos 120 anos da Abolição da Escravatura, quando foi lançada a edição tipográfica do poema Navio Negreiro, de Castro Alves: em pé, da esq. para a dir., Benedikt Wiertz, Gil Amâncio, Gabriela Guerra, Leo Gonçalves, Gabriela Pilati e Waldemar Euzébio; agachados, Ademir Matias, Laura Bastos, Flávio Vignoli, este posseiro e Tatu Guerra. Importante: Ademir é o tipógrafo responsável pela execução dos belos projetos concebidos pelos designers Laura e Flávio para a coleção Escrituras TIPOgráficas

15.5.08

Um do MODELOS VIVOS

A doença como metonímia



Trabalhadores da 
St. John del Rey Mining 
Company, em Nova Lima, 

Minas, gabam-se 

de sua origem
(“mineiros duas vezes”). 
Mas descon-

fiam que viver 
é para nada: morrem
cedo, antes de aprenderem, 

p. ex., a soletrar pneumoultra-

microscopicossilicovulcanoconiose
(= silicose, simpli-
ficam os que ficam).


                                

                                                  Ricardo Aleixo

14.5.08

Menos um




ROBERT RAUSCHENBERG
(22/10/1925-12/05/2008)

12.5.08

DIA DE FESTA, DO DEVIR-FESTA


Na próxima terça-feira, 13 de maio, a partir das 19h, o Projeto Escrituras TIPOgráficas lança seu segundo número, com o poema Navio Negreiro, de Castro Alves. O lançamento, que comemora a passagem dos 120 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, faz parte da programação de reabertura do recém-ampliado bar Balaio de Gato.

Idealizado pelos designers Flávio Vignoli e Laura Bastos, o projeto Escrituras TIPOgráficas consiste na concepção, montagem e confecção de livros artesanais em edições numeradas. “Selecionamos textos importantes da poesia de língua portuguesa que se encontram há muito fora de circulação e que são montados em tipos móveis de metal, ilustrados com clichês ou gravuras, impressos em papel especial e finalizados com acabamento diferenciado como costuras e encadernações manuais” diz Flávio Vignoli, que assina o projeto gráfico. O tipógrafo e mestre Ademir Matias é o responsável pela cuidadosa composição dos tipos e impressão das páginas, e assina os exemplares um a um. “É um trabalho minucioso, sou um obstinado pela perfeição na montagem dos tipos, do espaço branco, sem a ajuda de qualquer tecnologia digital. É importante uma iniciativa como essa, que valoriza a produção artesanal. São verdadeiros livros de arte”, conta Matias. 

O primeiro número da coleção trouxe o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, assinado pelo seu heterônimo Álvaro de Campos. “Este poema foi escolhido por um motivo afetivo e, claro, pela sua representatividade na obra do Fernando Pessoa. Escrito em 1928, este primeiro número do projeto, coincidentemente, também comemorou os 80 anos de vida do poema”, afirma Vignoli. 

O projeto Escrituras TIPOgráficas tem outros desdobramentos previstos para este semestre. Um deles ficará a cargo do poeta Ricardo Aleixo, que assinará a curadoria de uma coleção que reunirá poemas de alguns dos mais destacados poetas brasileiros da atualidade.

Tabacaria já está à venda nas livrarias Scriptum e Quixote e na loja do Balaio de Gato por 20 reais. No próximo dia 13 de maio, a partir das 19h, a nova edição de Navio Negreiro será apresentada ao público com performance especialmente concebida por Ricardo Aleixo, com as participações especiais do músico e ator Gil Amâncio, do músico Benedikt Wiertz, do poeta e compositor Waldemar Euzébio, da cantora Gabriela Pilati e do poeta e tradutor Leo Gonçalves, que homenageará o poeta antilhano Aimé Césaire, recentemente falecido.

Navio Negreiro estará à venda com preço especial de lançamento, tira-gosto afro e drink-cortesia do “novo” Balaio de Gato (rua Piauí, 1052). Entrada franca.

8.5.08

Dicas

¬ Que tal navegar nas ondas literárias? ¬ Quer ler um artigo que escrevi sobre Design Sonoro? ¬ Um espaço para a expressão espontânea e a improvisação interdisciplinar: se é isso o que você procura, clique aqui.

3.5.08

Entrevista


UM SAMBA SEM SOM: FRANCISCO KAQ (SE) DIZ



O corpo como texto e o texto como corpo: por trás desse aparente jogo de palavras reside, a meu ver, uma das chaves para a fruição do trabalho poético do recifense-em-Brasília Francisco Kaq, que, com seu quinto livro*, Diz, lançado no segundo semestre de 2007, traz novo sortimento de problemas para os poucos que se dispõem a discutir poesia, no Brasil, hoje, sem partir de falsas premissas como "geração", "angústia da influência" e outras que tais. Tento explicar: dizer o corpo como um texto, para Kaq, é abrir-se ao que, na experiência, aspira a ser efetivamente dito, significando, por isso mesmo, a tarefa auto-imposta de tratar o texto não como um corpus (apenas), mas como algo vivo que faz da página o seu lugar de passagem para o encontro com outros corpos (no limite, os dos possíveis leitores: lembrar que a leitura é, também, mesmo quando silenciosa, um ato performativo). 

Pensemos, por contraste, em Roland Barthes, que ao discorrer sobre a poesia moderna, fez a seguinte afirmação: "Uma vez abolidas as relações fixas, a palavra só tem um projeto vertical; é como um bloco, um pilar que mergulha num total de sentidos, de reflexos e remanências: é um signo de pé. A palavra poética é, neste caso, um ato sem passado imediato, um ato sem contornos, e que propõe apenas a sombra espessa dos reflexos de toda a procedência que lhe estão ligados." Pouco, quase nada disso tem a ver com a poesia de Francisco Kaq. A palavra parece ser, para ele, a recusa parcial da verticalidade em nome de uma horizontalidade, ou melhor, de uma eroticidade que instaura outras possibilidades de leitura. Ao invés da palavra como um "signo de pé", Kaq arrisca-se no desenho do poema como um quadro a quadro que recupera iconicamente a instabilidade do "samba no pé" que se insinua em alguns dos mais realizados textos de Diz.

Num dos momentos de mais alta voltagem do livro, o poeta traça imagens de grande delicadeza sobre uma dança memorável com a mulher amada: "samba que/ um corpo/ a outro/ quase// toca/ o sol/ suspenso/ risca// a tarde/ ao meio/ um corpo// roça/ outro/ róseo/ roçado/ e o samba// faz-se/ (que sarro)/ ficam/ tão rentes// surpreendidos/ ao sol/ passistas/ do instante// sem lastro". Mas o melhor, para o meu gosto pedestre, virá com a série "Incandescência do samba", que ultrapassa a visada etnográfica dos modernistas, em suas tentativas de tematização do samba. Até onde sei, em termos de poesia livresca, apenas na obra de Edimilson de Almeida Pereira (volto ao assunto em outra ocasião) é possível encontrar igual disposição para lidar com o samba sem idealizações/folclorizações/reducionismos, só com a ginga do corpo/texto "e a lâmina da voz", como no poema em que a persona de Wilson Baptista (secundada pelos personagens do grande sambista) retalha, precisa, a página: "sou isso:// chico brito/ valdemar/e a nega luzindo// passo gingando/ sou vadio// (...)// driblo/ todo dia/ o miserê// capto rápido a flor/ da lapa// polemizo/ e me esquivo// sou wilson".

E, claro, nem tudo é samba neste Diz onde "nada/ ainda/ se/ diz" (de resto, mesmo o samba que se dança se desenvolve em silêncio – e o silêncio, para Francisco Kaq, tem peso proporcional ao das fraturas sintáticas, de certo preciosismo vocabular e dos cortes abruptos que enformam sua escrita). Mais que reduplicar uma dada experiência, o texto de Kaq propõe-se ao olhar leitor como um acontecimento que exige de nós o abandono prévio das pautas classificatórias e dos delírios interpretativos que, por aqui e por aí, suprem a falta de sensibilidade para a leitura isenta da poesia contemporânea. A pretexto do lançamento de Diz, entrevistei o poeta, reinserindo nesta posse uma prática à qual espero dar prosseguimento (com outros poetas e artistas cujos trabalhos acompanho). [* Os títulos anteriormente publicados por Francisco Kaq são: Aresta/Hagoromo,1990; 1001, 1997; eu versus, 1999; e Poesia Aporia, 2002].


Kaq, quem diz o que se diz em seu novo livro?
Essa é uma pergunta sobre "a morte do autor"? Ou sobre sua vida? "Enquanto autor", sou confluência de diversas coisas que de algum modo falam por mim (uma tradição poética e artística, o acontecer histórico, a cultura brasileira minha contemporânea e sua capacidade de lidar com o outro etc. etc.). Mas penso que é decisivo pintar a voz própria, a singularidade-poeta – que é uma inflexão particular de tudo aquilo (selecionado, filtrado) que lhe é exterior? Embora possam ser interessantes propostas (vanguardistas) de eliminá-la, acho que um dos grandes baratos da (fruição da) poesia é perceber essa voz singular, com suas nuances, embates internos, desdobramentos – que entretecem uma visão de mundo, i.e., um mundo. Por que mesmo John Cage, quando insiste em eliminar a ‘voz’ própria (apelando pro acaso), não deixa de, enfaticamente, afirmá-la? (Aquele acaso tão cageano...). Diz é um momento da minha trajetória na poesia, a qual não pode ser senão a da busca incessante. E essa busca ou trajetória nasce junto, por assim dizer, com um compromisso com a poesia. Por algum motivo, a poesia tornou-se imprescindível para mim – e não me seria fácil entender-me sem isso. Alguns dados biográficos? Nasci no Recife em 1961, vim aos cinco pra Brasília, pra morar por uma década em um lugar especial: a Colina, no campus da UnB. Quis ser roqueiro, não rolou. O tal compromisso com a poesia fixou-se aos 18 anos. Depois de algumas tentativas de sair da cidade, entrei no curso de letras. Com uns amigos, fizemos as in(ter)venções artísticas do Grupo Heleura, culminando, em uma segunda etapa, no Labirinto Transparente – evento espacial multimídia (1987). Nasceram-me dois filhos durante a graduação, duas filhas depois, de dois idos casamentos. Sou servidor público desde 1986. Comecei um mestrado em comunicação em 1989, concluído depois de dez anos com uma dissertação sobre o filme Limite. Não consegui sair de Brasília por períodos maiores de quatro meses.

O que distingue Diz dos seus outros livros, isto é, em que ponto da caminhada você pensa estar, com o novo trabalho?
Bom, o Diz se insere em uma vertente da minha poesia que privilegia o verso curto e o quase-verso. Essa vertente começa com Aresta (1990 – ‘metade’ de meu primeiro livro), que, aliás, mostra outras vias também: a dos poemas visuais e a dos ‘textos estranhos’, difíceis de classificar, invenções. Neste último caso, "Os Véus Voláteis da Ninfa", composto de nove lâminas (ou véus), cada uma com 8 palavras (e uma lacuna ou pausa) dispostas verticalmente (esse poema me parece, hoje, ainda interessante, mas um tanto imaturo). A outra metade de Aresta é o Hagoromo, uma versão-pirata da peça nô (via Pound e Haroldo de Campos), que, ao mesmo tempo que usa o verso curto e o quase-verso, pretende-se também uma invenção. Eu versus (1999) e Diz, os mais puros representantes do meu (quase-)verso, tem alguns momentos de poesia visual, ou tendem para isso (algo implícito, aliás, no conceito de quase-verso). O mesmo – uma tendência para o gráfico-visual – se encontra, e até bem marcado, nas invenções. Talvez a mais inovadora dentre estas seja Poesia Aporia, publicada como um livrinho em 2002. Poesia visual mesmo, quando não concreta, é a do 1001, de 1997. Durante a maior parte de tempo do preparo do Diz – onde penso estar dominando mais o instrumento –, imaginei que ele encerraria minha carreira no verso (mas não no quase-verso) – será mesmo?

Enquanto uns e outros continuam a se desentender acerca da entediante questiúncula sobre poesia versus canção (se esta é aquela), você aparece com uma série sobre o samba. De que lado você samba quando o assunto é a poesia brasileira?
Eu penso que tem equivalências e diferenças entre poema-letra-de-música e poema-de-versos-impressos – como há entre ambos e o poema visual. Isso faz parte, talvez, do questionamento entediante a que você se referia. Acho importante perceber que eles têm a ver mas não são, em princípio, a mesma coisa (embora possam sê-lo – um poema que vira letra, etc.). Sem esquecer que, nas origens, essas coisas estavam juntas. Poetas de nossa geração foram tão marcados pela vivência da letra de música, não é? Aliás, como estar no Brasil ignorando isso, mesmo se a canção da MPB já não mostra a mesma força? O samba propriamente é uma coisa que me bate muito forte – e só posso ficar feliz com certa revivescência por que tem passado o culto aos nossos grandes sambistas. Para além da curtição estética, mas certamente associada a ela, o samba também representa para mim a entrada numa realidade (social, cultural) brasileira – que é antiga mas também presente, sem deixar de ser virtual. Esse lado vai estar mais marcado em meu próximo texto motivado pelo samba. As pessoas hoje tendem a ter seu contato básico com a poesia por meio da palavra cantada (mesmo que certas tradições dela mostrem-se cansadas). O que resta, então, para a poesia-no-papel dizer? Deve a poesia-signos-escritos, ou grafados, migrar para o computador? De que jeito? E essa coisa, na qual você é bamba (e onde também apronto as minhas), que é a oralização inventiva da poesia? Que bom termos todas essas modalidades em circulação, a nosso dispor, cada uma informando, provocando, questionando a outra. Mas não é tão fácil tirar o melhor partido disso. Poesia é desafi(n)o.

Já no início do livro tem um poema que capta, acho, toda a eroticidade do samba, dos lugares onde se samba. Fale a respeito, por favor. E é um livro que rescende a sexo, não é, Kaq? "ex/tranhos/ alma/corpo// entram/se", entre outros pontos de luz. Pode falar sobre?
Sim, o samba tem sua pulsão erótica, é claro. Como naquele lindo texto do Hélio Oiticica que você pôs aí no blog. Curiosamente, o poema a que você se refere nasceu de um samba sem som (audível), dançado a dois em um lugar deserto – o que não obsta outras leituras. A minha poesia, penso que também tem essa pulsão, desde o início. Tentando fugir de obviedades como ‘eros é vida’ (sem deixar de ser, também, morte), constato que ele, eros (algo mais abrangente que sexo), é múltiplo – e assim ele se expressa na poesia, inclusive na minha. Entre diversos, penso que esse modo de ver eros (me) interesse muito: o mais exigente (des)encontro com @ outr@. Onde a outra voz aparece como discordante, concordante e até, com sorte, estrepitosamente uníssona. Para a poesia, é fundamental o eros das palavras que se atraem e se chocam, a sedução do som, a orgia – calculada e incontrolável – do sentido.

O "vazio da poesia" é "extravagante", diz você no poema que fecha o volume. Pode o vazio da poesia se contrapor ao vazio das falas do mundo ou a jogada não é bem essa?
Você sabe que essa coisa de poesia e vazio, poesia e nada, tem obcecado alguns dos maiores (Mallarmé é o exemplo cabal). Quando eu falo em ‘extravagante vazio’, quero referir-me a um vazio que vaga, que extravasa, que vai, talvez, à deriva. Mas seria esse vazio justamente a possibilidade do som, do signo (a folha em branco etc.)? Em outro poema, eu falo de “um vácuo / de si pleno”; o vácuo seria a impossibilidade do som – mas não, decerto, do sentido. Enfim, a coisa do diz-que-não-diz, do “silêncio / (que) ecoa” ou do desdizer-se, está bem presente no livro, freqüentemente com um sentido auto-irônico. O que não exclui outros mais verticais sentidos, mas quero dizer o seguinte: faço meus poemas mantendo um certo grau de (in)consciência, sem entendê-los totalmente - não deliberadamente, mas porque é assim que pinta – e assim que deve ser, eu penso, na poesia. Depois, eu posso ter um monte de sacações que eu mal vislumbrava. Bem, o vazio-balbucio da poesia é diferente do vazio-balbúrdia das falas do mundo – embora neste também possa ter poesia, não é mesmo?

Poesia já tem serventia ou a gente vai continuar a dizer que ela não serve para nada?
Acho que a poesia sempre teve serventia pra minoria que a lia – ou, integrada à festa e ao rito, pra bem mais gente. Será que ela ainda servirá pra um mundo que corre altos riscos de colapso – ou para um mundo já pós-humano? Não sei, mas para os humanos, com sua insistente sede de revelações semântico-sensoriais, a arte sempre foi imprescindível. Com a modernidade, ela se tornou (mais) crítica, questionadora. A poesia, com certeza, pluraliza as possibilidades do real.

A área de dança me parece a mais interessante, hoje, no Brasil, no sentido da proposição de questões estéticas e políticas sobre o "corpo pensante" e a ampliação de seus (do corpo) possíveis. A poesia, ao contrário, eu tenho visto como uma das áreas mais acomodadas, como se todos já soubessem o que é e o que não é poesia e, sobretudo, como se todos estivessem muito certos da inviabilidade da arte da palavra num tempo de surdez e cegueira quase absolutas como o nosso. Quer falar a respeito?
Taí, eu não manjo de dança – como manifestação artística elaborada e tal –, mas creio que um corpo pensante, ou um pensamento corpóreo, é bastante necessário pra poesia. Vi, na internet, uma bela proposição do Carlito Azevedo, que dizia ser a saída pra poesia, hoje, assumir-se como jogo intelectual (se bem o traduzo). Tudo a ver! Mas este jogo é diferente do jogo intelectual do filósofo, pois é um jogo muito colado aos sentidos (físicos), ao sensorial – além de outras peculiaridades. Não, caro Rique, eu não vejo a poesia brasileira atual tão acomodada, não. Claro, podia ser bem mais inquieta, mais estudiosa, mais ousada e outros mais. Ocorre que há pessoas fazendo poesia muito boa e/ou inovadora. E, retrocedendo um pouco, uma maravilhosa tradição recente e pouco valorizada (dos 50 pra cá). Seria o momento de ressaltar alguns nomes, entre os óbvios e os não, mas vou esquivar-me dessa tarefa, por enquanto. Creio também que a poesia atual, como um todo (não necessariamente cada poeta), deve encarar o desafio da tecnologia.

Você esteve fora do Brasil por uns tempos, recentemente. Por onde andou, o que viu por lá e o que trouxe do que viu/ouviu/viveu para a sua poesia?
Acho que não aproveitei tão bem os 3 meses em que estive na Europa no ano passado. Quer dizer, pessoalmente foi muito importante, mas, enfim, deixa pra lá...

Pernambucano em Brasília, você acaba tendo uma visão privilegiada - porque distanciada e ao mesmo tempo próxima - do que se passa na assim chamada poesia brasileira contemporânea. Um tema recorrente, hoje, é, surpreendentemente, a contestação da histórica supremacia do eixo Rio/São Paulo, com Minas vindo meio pelas beiradas. Essa discussão te mobiliza de algum modo?
Penso que Brasília possibilita, sim, uma visão peculiar. Cheguei aqui quando a cidade era muito nova – parecia possível fazer surgir uma cidade a partir do ‘nada’, JK ou Anfion? A incrível concepção de Brasília tinha contradições e lacunas; trouxe, enfim, novos problemas (a convivência com o poder político é um deles). Sua virtual proximidade com (os) diferentes lugares do país cria uma situação interessante – mas como lidar com isso? Não como uma obrigação, com certeza, de fazer a síntese, nem mesmo a mistura... Gostaria de acompanhar melhor a poesia brasileira contemporânea (entre tantos outros “gostaria de... melhor”). Claro, temos sempre os núcleos de poder e seus mecanismos, conscientes ou não, de perpetuação. Contestar a supremacia RJ/SP é ótimo – mas sem paternalismo com o que está à margem – ele vai ter que, por si, se impor.

Você está sempre fazendo coisas em Brasília, no tocante à discussão e à difusão da poesia (organizando eventos, escrevendo ensaios e artigos críticos etc.). Como vão as coisas por aí?
Acabo sempre aprontando alguma coisa, mas com bons períodos de retraimento de permeio. Não sou alguém integrado ao mainstream (poético etc.) candango. Os poetas com que mais me identifico por aqui são Roland de Azeredo Campos, Gabriel Beckmann e Teodoro Gontijo (este último, pelos poemas digitais e vídeos).

Para encerrar, fale um pouco, por favor, sobre os próximos projetos que pretende desenvolver.
Estou com duas coisas quase terminadas (mas esse quase bem que pode render): um livro reunindo meus ensaios e textos críticos (escritos num período de 20 anos e em sua maioria publicados); outro com duas invenções, que venho tramando há um tempo quase inacreditável (considerando sua magreza), sendo uma delas o texto com o samba (miniépica colagística) a que me referi.


Dois poemas de Francisco Kaq


ela menina sob limoeiro


florcirculada
uma menina

asacor acima
esvoaça

mijo escorre sob
cor em alvoroço

.


na tela
branco súbito

corpo: uma
tela fina

satori para
crianças

tempo de zerar
o tempo




no manaus (em memórias
do cárcere) 


um batuque
surdo
um batuque
bom
samba no
porão
samba no

todos se 
acercam
– faces já
distensas –
do buraco
negro
degelo
desrazão

outra
se instala
sublime
sincopada
radiante
tensão

esta revolta
– quiçá
revolução –
irmão
comuna
eu entendo:
ela é bela

mas vão
pro diabo
já que aí
estão
degredados
de futura
áfrica

que virá
ou não

2.5.08

Conversa inteligente, necessária, aberta


Aos que acham que a poesia brasileira está definitivamente entregue à auto-complacência demonstrada pela IMENSA MAIORIA dos poetas em atividade no país, hoje, recomendo, como contra-veneno, a leitura de uma boa conversa entre Carlos Augusto Lima e Delmo Montenegro, publicada na coluna quinzenal que o primeiro mantém no Diário do Nordeste, de Fortaleza. Uma das respostas de Delmo
: "Reduzir minha literatura a sua filiação ou não aos movimentos de vanguarda é querer encapsulá-la num jogo colonialista superficial. As vanguardas, enquanto propostas ideológico-políticas, já se esgotaram há muito tempo. Só podemos retomá-las pelo viés crítico, pelo viés irônico, arrancando-lhe as máscaras. No limite extremo, há um sentido épico e religioso no Nazismo que o aproxima do conceito de Obra de Arte Total do Teatro de Bayreuth. E isto é terrível. Terrível, porque profundamente verdadeiro. Porém só quem vivenciou esta angústia pode fazer a crítica da cultura dos postulados dominantes da arte do século XX. As metáforas militares, as metáforas de poder, sempre permearam os instrumentos eurocêntricos de estudo e dissecação da língua - verbo, sintaxe, regência, etc, todas são expressões de origem militar - o próprio termo página, do latim pagus, carrega essa idéia de territorialidade, de espaço de posse, de espaço de luta. O local da página sempre visto como um local de combate. A própria idéia de uma literatura de infantaria, de avant-garde, nada mais é do que a radicalização explícita desses movimentos de autoridade. Minha literatura aposta na diversidade, no outro, na polissemia dos sentidos, no extravasamento das normas. Não há pontos de fuga ou uma teleologia de fundo místico onde escoro as minhas verdades. Todas as minhas verdades são transitórias. Não aposto numa ideologia da História. Diante de Heráclito, cai o edifício do poema cósmico de Parmênides."